quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

“Chico do Norte”, teatro de Alexandre Castanheira


(Um excerto do epílogo de “Chico do Norte”, texto para Teatro, de Alexandre Castanheira: Chico Carrapeto, “dito Chico Beirão, depois Chico do Norte”, encontra-se com o filho, Toino, em Paris - para onde este tinha emigrado – e tenta convencê-lo a regressar a Portugal. A acção decorre pouco depois do 25 de Abril de 1974.)

Toino: E terei trabalho lá em baixo, pai?

Chico: Pois claro que tens, Toino. A Cooperativa é de todos. Vais trabalhar como os outros.

Toino: Ainda me parece um sonho!

Chico: Mas não é Toino. Portugal é outro!

Toino: Oh pai, não diga isso! Qual Portugal!? O Alentejo! O Alentejo é que é outro. Veja lá o que fazem no Norte! Atentados, bombas, fogos em sedes, fogos nas matas, eu sei lá…!

Chico: Não, Toino! O povo é o mesmo no Norte e no Sul. A exploração e os exploradores são os mesmos. Os explorados também. O povo do Norte é tão bom como o povo do Sul mas há coisas que lhe escondem.

Toino: Ele é que não quer ver!

Chico: Não é verdade, Toino. Estás a falar mal de ti mesmo e de mim. Eu sou do Norte e tenho honra nisso. Mas enquanto fui Chico Beirão, em Amarante, era um trabalhador que sabia que era explorado, que sabia bem que era o Freitas e os seus amigos que nos exploravam, mas não sabia como podia lutar contra ele. Ele tinha tanta força! Tinha tudo nas mãos: os salários, o Grémio, a polícia e a terra que era o nosso ganha-pão!

Toino: E a Câmara!

Chico: Tudo, Toino, tudo! É difícil um homem mexer-se contra um tal poder. E depois eu sabia o que pensava, mas já não sabia o que pensava o Elias, mesmo ao nosso lado, nem o Esteves, logo a seguir, nem o Machado, o Abílio, todos os que estavam na mesma que eu… Não nos misturávamos, não discutíamos, a não ser quando havia algum temporal que a todos prejudicava. Então sim, estávamos todos unidos contra o tempo, quem pagava as favas era o tempo. Mas contra o Freitas, isso já ninguém ousava unir-se, senão acontecia como aos operários da têxtil e das minas. Ia tudo pró chelindró da PIDE!

Toino: Mas isso também se passava no Sul, pai!

Chico: Enganas-te, Toino. Quando fui parar com a tua mãe ao Alentejo aprendi coisas que me abriram os olhos. Lá o patrão não era o Freitas, era o Durão. Mas eram iguais um ao outro. Só pensavam em explorar, em viver à custa dos trabalhadores. Mas havia no entanto diferenças também, e importantes.

Toino: Quais?

Chico: Olha, o Freitas, a gente tinha-o sempre debaixo de vista. Passeava na terra, viamo-lo na Câmara, vinha discutir à nossa casa o pagamento das rendas, recebia-nos no Grémio, eu sei lá… Qualquer passo que déssemos, lá o tínhamos na frente, mandão, autoritário, ameaçador. Era o cacique da terra, o dono de tudo, das terras e dos homens, do gado e das pastagens, das sementes e dos adubos, dos celeiros e dos armazéns. Pela força do dinheiro comprava tudo. Até homens, filho, até homens!

Toino: E esse tal Durão?

Chico: Era diferente. Só ía à casa que tinha na propriedade do Rosal no tempo da caça. O resto do tempo morava em Lisboa. Casara com a filha dum banqueiro da capital e não gostava nada do Alentejo. Queria era festas e ópera e viagens ao estrangeiro. Por isso o Durão era o patrão, o dono de tudo também, mas quem nós víamos na nossa frente era o capataz, um tal Gregório. Um malandro, claro está. Mas com ele era só a questão das jornas que nós discutíamos.

Toino: E as sementes?

Chico: Mas não, filho. Nós no Alentejo não tínhamos terra. Quando passei a ser o Chico do Norte só tinha os braços, nada mais. E todos os outros trabalhadores eram como eu – só os braços, Toino. Não havia rivalidade entre nós. Estávamos todos iguais deante do lacaio do patrão. Por isso estávamos todos unidos também. O Durão era maior agrário ainda que o Freitas, mas não era o cacique. Olha Toino, na cabeça dos trabalhadores tinha mais peso o que dizia o “Avante!” que o que dizia o Durão. Já vês que é muito diferente! Por isso a luta é mais difícil no Norte, é mais difícil de fazer conhecer a verdade da Ravolução aos pequenos agricultores do Norte. Até o padre às vezes não ajuda!

Toino: Quem? O padre Soares?

Chico: Esse não ajuda mesmo nada a esclarecer! Se queres saber, antes de te vir buscar a Paris, resolvi ir à terra, tanto mais que a Zefa, de Santo Tirso, estava muito mal e tinha-me escrito a dizer que me queria ver.
Toino: está melhor?

Chico: Está sim, melhorou muito. Ainda não é desta que irá pró céu.

Toino: Ainda bem, que eu gosto muito dela e ainda a quero ver. Quando eu me puser a falar francês deante dela, o que ela vai rir!

Chico: Mas como te ia dizendo. Fui à terra. Falei com o Elias e o Estevas. Não sabiam de nada!... Pensavam que nós no Alentejo tínhamos roubado a terra, a casa, as máquinas, o gado, tudo, ao agrário e a todos os que tinham um pedacinho de seu! Diziam que tínhamos dividido tudo entre nós e que andávamos agora a vender tudo para continuarmos à boa vida, sem trabalhar. Que só queríamos era comer e dormir com as filhas de um e de outro no maior dos deboches. Que estávamos a dar cabo e tudo o que o patrão e os pequenos agricultores tinham conseguido arranjar ao fim de uma vida de trabalho!

Toino: Não é possível, pai, eles não lhe disseram isso…!
Chico: Disseram, pois! E sabes quem lhes tinha metido isso na cabeça? O padre Soares! O malandro do Freitas, depois do 25 de Abril, aparece menos. Fio posto fora da Câmara por uns democratas do MDP/CDE, no Grémio perdeu força ou tem medo de empregar a força antiga, o que sei é que aparece menos. Deve ter medo que a Revolução vá também prá frente no Norte e lhe venha pedir contas e, por isso, prefere que não dêem por ele.

Toino: Então as coisas melhoraram!

Chico: Melhoraram qual carapuça! O malvado o que fez? Comprou o padre Soares! Este é que vai lá a casa dele constantemente e depois vai de rua em rua, de casa em casa contando o que segundo ele estão fazendo no Sul os comunistas – que é como ele chama aos alentejanos. E depois, ao domingo, na missa, não queiras saber: “Livrai-nos Senhor das forças do mal que roubam as terras a quem as trabalha, roubam o pão aos nossos trabalhadores, fazem trabalhar os velhos ou, se já não servem para trabalhar, dão-lhes uma injecção por trás da orelha e matam-nos logo para não serem obrigados a dar-lhes de comer”!

Toino: E ninguém dá cabo desse mentiroso?

Chico: Isso era o que a reacção queria, filho. Se um dia alguém der uma sova ao Soares, então será o Freitas que reaparecerá a gritar: “Já cá chegaram os comunistas! Começou a violência comunista! Unamo-nos contra os comunistas!”

Toino: Malandro!

Chico: Queres tu ver do que eles são capazes? Quando foi a entrega do tractor dos emigrantes à Cooperativa de Lousada, dois dias antes os dirigentes da cooperativa receberam cartas dizendo que se aceitassem o tractor seriam mortos, pois o tractor tinha dos comunistas e, portanto era obra do diabo e precisava, por isso de ser destruída! Na véspera a terra apareceu cheia de papéis avisando o povo de que não deviam deixar lá entrar aquele engenho do demónio, que o deviam destruir à entrada! O povo não o fez e recebeu em festa o tractor, mas à noite nesse dia ninguém se atrevia a andar na rua com medo de alguma vingança! Já vês o ambiente que a reacção faz reinar no Norte!

Toino: De facto, assim deve ser difícil de mostrar àquela gente o que na verdade se passa desde o 25 de Abril…

Chico: Pois é. Precisamos todos de os ajudar a compreender. Ir lá explicar-lhes ou escrever à família a contar como é a verdade. Eu, quando lá fui, foi o que fiz. Falei com o Elias e o Esteves. Eles saíram-se com aquelas mentiras todas. E eu disse-lhes: vocês querem conhecer a verdade? Têm confiança em mim? Temos sim Chico e queremos ouvir-te. Então organizem uma assembleia de pequenos proprietários na Casa do Povo, que eu vou lá explicar.

Toino: E eles?

Chico: Eles? “Na Casa do Povo?”, perguntou o Esteves. Pois, respondi eu, não é a casa de todos agora? “De todos?” Foi a vez do Elias falar: “Ela continua a ser do Freitas e nem está aberta. Há mais de um ano que está fechada!”. Eu então expliquei-lhes o que nós tínhamos feito à nossa, como a puséramos ao serviço de todos e disse-lhe: “Então se não pode ser lá, que seja na casa de um de vocês”. E assim foi. No dia seguinte, quando cheguei de casa da Tia Zefa, fui à casa do Abílio e fiz a reunião de explicação. Não estavam lá muitos, pois alguns tiveram medo, como se ainda estivéssemos em fascismo. Contei-lhes tudo o que fizemos com a terra da reforma agrária. Nunca tinha visto olhos tão esbugalhados!...

Toino: E eles convenceram-se?

Chico: Sabes filho? Como sou do Norte penso que acreditaram. Mas não esqueças que logo no dia seguinte já o Soares e o Freitas devem ter recomeçado a sua obra de destruição reaccionária…

Alexandre Castanheira
"Chico do Norte", Teatro, Setúbal, 1977

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