quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Texto de Romeu Correia sobre Alexandre Castanheira e a peça de teatro “Chico do Norte”

«Alexandre Castanheira na minha memória

Por volta de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, em que se travava uma luta de vida ou de morte pela Democracia, e ainda as hostes nazi-fascistas estavam na mó-de-cima, alguns jovens empreenderam na então pacata vila de Almada uma dinamização cultural. Criaram a Biblioteca Popular da Academia Almadense, ressuscitaram a dúzia de livros esquecidos (desde 1931) num escaparate de outra colectividade, a Incrível, promovem palestras e recitais de poesia por outras agremiações. E é por essa ocasião que todos nós começamos a notar a presença de um jovem de 15 anos de idade, loiro e de fino aspecto, que muito interessado se mostra por todas essas actividades de esclarecimento da população.

Por essa altura, ainda a Academia se encontrava de relações cortadas com a velha Sociedade Filarmónica Incrível Almadense (esta fundada em 1848, em pleno reinado de D. Maria II, no rescaldo da Revolução da Maria da Fonte, que apeara a ditadura de Costa Cabral, e que, dada a tremenda dificuldade em se constituir nessa altura uma associação popular – já nesse tempo… -, adoptou o nome insólito de Incrível…), situação anómala e lastimável que não dignificava uma vila de trabalhadores, tão progressiva como Almada.

Esse jovem, de nome Alexandre Castanheira, aluno liceal e mais tarde universitário sem que tivesse perdido ano algum (um aluno distintíssimo e mui prometedor, como nestas circunstâncias são noticiados no carnet mondain os meninos-bem…), além do estudo dedicava já um amor visceral à vida associativa da sua terra e um acrisolado interesse pelo povo trabalhador.

Até aqui nada haveria a acrescentar sobre este rapaz, pois o Alexandre Castanheira começava como todos nós e até como muitos outros, que, infelizmente, após o curso universitário e o casamento, se acomodam, tratam da vidinha, esquecendo tudo e todos sem o mínimo respeito pelas antigas opiniões e atitudes.

Mas com aquele jovem loiro (que assinava agora os primeiros poemas com o pseudónimo de Edgard Castanheira) tudo se iria processar, e exemplarmente, de modo diferente. Sem o mínimo esmorecimento foi galgando os anos liceais e universitários, dando ao mesmo tempo uma importante colaboração às actividades culturais do concelho de Almada. Palestras, recitais de poesia (colaborou até com o Orfeão da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo Fernando Lopes Graça), aulas de francês, cargos directivos na Incrível e no Grupo Campista. Que fogos de campo ele organizou!

(…)

Em 1947, pertencia à Comissão Central do MUD Juvenil, actividade que prolongou por mais sete anos. Veio a campanha do general Norton de Matos como candidato à Presidência da República, e a voz do Alexandre foi ouvida em todo o distrito de Setúbal.

Claro que, entretanto, a Pide havia preenchido já a sua ficha de anti-fascista e anotado essa actividade consequente ao ponto de o hospedar por várias vezes nas suas enxovias. Aqui não deve ser olvidada a actividade colaborante de sua Mãe – uma grande e corajosa mulher! – que, sem descanso, lutou nas negras horas pela libertação do filho. Abaixo-assinados, surtidas à sede da polícia política, tão insistentes e intimoratas que obteve (naqueles vergonhosos tempos!) permissão de ser recebida e de até discutir com o chefe supremo da Pide de então, o famigerado Neves Graça.

Por volta de 1954 (perdoa, caro leitor, a citação destas datas!), o Alexandre, com a licenciatura de Histórico-Filosóficas concluída, desapareceu do nosso convívio. Os pais haviam saído de Cacilhas para outro lugar, e nós pouco ou quase nada sabíamos do destino daquele jovem doutor, que tão bruscamente se eclipsara dos amigos e do movimento associativo almadense.

No Outono de 1956, viajávamos numa camioneta nos arredores de Lisboa, quando nos tocam nas costas. Era ele! Mas sempre o mesmo: risonho, jovem e irrequieto de esperança. E não tardou a explicação da ausência: militava no Partido Comunista Português e mergulhara na clandestinidade sem demora, porque não podia continuar a viver dentro e fora da cadeia…

Mais vinte anos vão decorrer sem que o cidadão Alexandre Castanheira visite a terra natal. Todos sabemos que reside em França e é membro do sindicato CGT da fábrica de automóveis Renault, exercendo o cargo de secretário do Movimento Francês Contra o Racismo. No exílio, licenciou-se igualmente em Letras Modernas Francesas, pela Universidade de Paris. A sua absorvente actividade social e política, na luta travada contra a ditadura fascista, limitou, como é natural, o professor e o poeta nas suas realizações.

Após o 25 de Abril, este nosso querido amigo visita por duas vezes a sua (e nossa) terra natal, e em ambas as permanências presenteia os patrícios com palestras e recitais de poesia. E, da última vez que nos abraçamos, entrega-nos uma peça teatral, intitulada Chico do Norte, com o pedido de que lhe acrescentemos algumas palavras de apresentação.

Chico do Norte é um belo e corajoso texto teatral elaborado para a defesa da Reforma Agrária, a conquista maior da Revolução de Abril. Peça didáctica, muito precisa nos seus objectivos, servida por figuras e problemas dos nossos campos, homens e mulheres mergulhados em moral-velha, de figurino feudal, e espoliados desumanamente no viver quotidiano.

Ao longo de dois actos e um epílogo, o autor retrata uma família de camponeses nortenhos – Chico Carrapeto e os seus –, que se debate entre a hipoteca da courela ao agrário-insaciável e a miragem-recurso da emigração.

(…)

Mas lentamente, muito lentamente (como a consciência de classe é, por vezes, morosa a conquistar os próprios interessados!), homens e mulheres ganham lucidez e descobrem o lado (o seu lado) da razão e os remédios para debelarem tanta miséria.

Almada, 20 de Outubro de 1977»

Romeu Correia

(No prefácio a “Chico do Norte”, texto para Teatro, de Alexandre Castanheira. Setúbal, 1977)

Mais informação:

Biografia de Romeu Correia:
pt.wikipedia.org/wiki/Romeu_Correia

Biografia de Alexandre Castanheira:

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